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sexta-feira, 28 de março de 2014

50 anos do golpe: Coronel admite participação em tortura e morte nos porões





O coronel reformado Paulo Malhães em depoimento para a Comissão Nacional da Verdade
Foto: Pedro Kirilos / Agência O Globo
O coronel reformado Paulo Malhães em depoimento para a Comissão Nacional da Verdade Pedro Kirilos / Agência O Globo
RIO - O coronel reformado Paulo Malhães, ex-agente do Centro de Informações do Exército (CIE), assumiu nesta terça-feira, em depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV), o envolvimento em torturas, mortes e ocultação de corpos de vítimas da repressão. Pela primeira vez em público, ele confirmou a participação na equipe que operou, nos anos 1970, a Casa da Morte, aparelho clandestino do CIE em Petrópolis.
Malhães disse que os corpos eram lançados nos rios, depois da retirada dos dedos e da arcada dentária para impedir a identificação:
— Naquela época não existia DNA, concorda comigo? Então, quando o senhor vai se desfazer de um corpo, quais são as partes que, se acharem o corpo, podem determinar quem é a pessoa? Arcada dentária e digitais, só. Quebravam os dentes e cortavam os dedos. As mãos, não. E aí, se desfazia do corpo.
Como revelou ao GLOBO há duas semanas, ele admitiu ter recebido uma ordem de missão do comando para ocultar o corpo do ex-deputado Rubens Paiva, que estava enterrado no Recreio dos Bandeirantes. O mesmo testemunho foi dado à Comissão Estadual da Verdade, em dois depoimentos gravados recentemente. Porém, desta vez, à Comissão Nacional, o coronel disse que a operação foi executada por outro oficial do CIE e que decidiu assumi-la em solidariedade à família de Paiva, que há 43 anos luta para descobrir o paradeiro do ex-deputado, morto em janeiro de 1971.
— Eu deveria ter feito, sim, mas tive outra missão. Eu disse (à imprensa) que foi eu porque acho uma história muito triste quando uma família leva 38 anos para saber o paradeiro de uma pessoa. Não estou sendo sentimental, não — declarou.
Coronel viu corpo de paiva
Malhães, porém, caiu em contradição ao admitir ter visto o corpo de Paiva desenterrado:
— Existia uma massa morta, enterrada e desenterrada, não identificada. Nem sei se aquela massa era realmente dele. Sabia que tinham enterrado e desenterrado.
A ordem, segundo ele, fora dada pelo então coronel Coelho Neto, que em 1973 era o subcomandante do CIE. Ao GLOBO, disse que o objetivo da missão era “consertar uma cagada” do Destacamento de Operações de Informações do 1º Exército (DOI-I), da Rua Barão de Mesquita, local da morte de Paiva. O corpo, disse, foi inicialmente enterrado pelo DOI no Alto da Boa Vista. Levado mais tarde para o Recreio, teria sido desenterrado e jogado no mar.
Como capitão, Malhães foi um dos mais ativos integrantes da Agência Rio do CIE, nos anos de chumbo do regime militar (1969-1974), participando de algumas das mais importantes operações de combate às organizações da esquerda armada, incluindo a Guerrilha do Araguaia, a Casa da Morre e o Massacre de Medianeira, como ficou conhecida a emboscada que matou, em 1974, o ex-sargento Onofre Pinto e pelo menos mais cinco militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Por problemas no nervo ciático, causados por um tombo, ele entrou no Arquivo Nacional de cadeira de rodas. Exigiu que o depoimento fosse prestado em ambiente fechado, mas acabou concordando com a presença da imprensa. Durante pouco mais de duas horas, respondeu as perguntas formuladas pelos advogados José Carlos Dias e Rosa Cardoso, ambos da comissão. No início, parecia tenso, mas se descontraiu e chegou a rir mais de uma vez.
Malhães disse que, no começo da carreira, chegou a torturar presos políticos. Porém, depois de “sofrer uma evolução”, teria trocado os métodos violentos por tortura psicológica. Uma dos métodos de pressão era dizer ao interrogado que a prisão só seria oficializada, livrando-o dos riscos da clandestinidade, se ele decidisse colaborar.
O coronel disse que não se arrepende do que fez, pois procurou cumprir as missões que o Exército lhe deu.
— Não tinha outra solução. Me dê uma solução.
Ele disse que teme vingança “não em mim, mas nos meus filhos”.
Malhães disse que, desde a publicação de reportagens envolvendo o seu nome nas violências praticadas nos porões do regime, seus cinco filhos e oito netos estariam “sofrendo sanções”.
Inês reconhece torturadores
A audiência pública de ontem, no Arquivo Nacional, começou com a divulgação de relatório parcial sobre o caso na presença de Inês Etienne Romeu, única sobrevivente da Casa da Morte. Ela reconheceu o oficial da reserva Antônio Fernandes Hughes de Carvalho como “Alan”, codinome de um dos torturadores que atuavam no local.
Em depoimento à comissão, Inês reconheceu por foto outros cinco agentes como torturadores (major Rubens Paim Sampaio, capitão Freddie Perdigão Pereira, sargentos Rubens Gomes Carneiro e Ubirajara Ribeiro de Souza e o comissário de polícia Luiz Cláudio Azeredo Vianna).
Apontado ontem pela comissão como um dos responsáveis pela Casa da Morte, o general reformado José Antônio Nogueira Belham vai depor em 1º de abril, às 14h, na Câmara dos Deputados. O militar era o comandante do DOI-I, em janeiro de 1971, quando Paiva foi torturado e morto na unidade. A convocação de Belham foi pedida pela Comissão de Direitos Humanos e Minoria da Câmara, que vê nele o responsável pela ações violentas no local.

Antiga sede do DOI-Codi, na Tijuca

O Destacamento de Operações de Informações (DOI) funcionava no 1º Batalhão de Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Em vários estados brasileiros foram instalados prédios para abrigar esses órgãos, subordinados ao Centro de Operações de Defesa Interna (CODI). No local, em 1971, que o ex-deputado Rubens Paiva foi torturado e, depois, morto.

Vítimas da Casa da Morte

Não se sabe ao certo quantas pessoas foram mantidas presas na Casa da Morte, em Petrópolis, na Região Serrana do Rio de Janeiro. No entanto, alguns nomes foram confirmados por testemunhas da época. Saiba quem pode ter sido vítima dos horrores da casa, segundo do Ministério Público Federal, e o conheça o relato da única sobrevivente




Única sobrevivente da Casa da Morte relata tortura, estupro e humilhação

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Inês Etienne: últims presa política a ser libertada, ela quer colaborar como puder com a Comissão da Verdade
Foto: Marcos Tristão / O Globo




Inês Etienne: últims presa política a ser libertada, ela quer colaborar como puder com a Comissão da Verdade Marcos Tristão / O Globo
RIO — Como em todas as batalhas que travou na vida, Inês Etienne Romeu diz estar pronta para mais uma. Aos 69 anos, ela também quer colaborar com a Comissão da Verdade. Inês possui vários títulos dos anos de chumbo, todos difíceis de carregar. Foi, por exemplo, a última presa política a ser libertada no Brasil. A única prisioneira a sair viva da Casa de Petrópolis, depois de 96 dias de tortura.

Só a partir de um depoimento escrito por ela no hospital, em 1971, e entregue à OAB em 1979, quando terminou de cumprir pena, foi possível localizar a casa e identificar parte dos agentes que atuavam no local — entre eles o colaborador dos torturadores, o médico Amílcar Lobo. Também é crédito dela saber que passaram pela Casa da Morte alguns dos militantes desaparecidos na época, entre eles o Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, que comandou Dilma Rousseff nos tempos da VAR-Palmares.
— Quero colaborar como puder — disse, com esforço, ao saber da reportagem sobre a Casa de Petrópolis.
Foi ela que cedeu ao GLOBO uma planta da casa, desenhada por um arquiteto a partir de suas informações. Aos 69 anos, Inês se lembra de tudo e, aos poucos, volta a falar. Vítima em 2003 de um misterioso acidente em sua residência, ela teve traumatismo cranioencefálico, com afundamento de crânio, e por pouco não perdeu a vida. Mas está se recuperando. A voz custa a sair, mas está mais firme a cada dia movida por uma força interior cuja origem só ela sabe. Os documentos guardados em seu arquivo pessoal agora estão sendo intensamente lidos e relidos todos os dias.
Militante da VAR-Palmares, Inês integrou o grupo que participou do sequestro do embaixador da Suíça, Giovanni Bucher, mas em 5 de maio de 1971 sua história como guerrilheira teve um fim drástico. Capturada por uma equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury, ela começou o calvário em São Paulo, mas foi trazida ao Rio no dia seguinte.
Durante os 96 dias em que esteve presa, Inês foi torturada, humilhada e estuprada: “Eu estava arrasada, doente, reduzida a um verme e obedecia como um autômato”, contaria no depoimento entregue à OAB, admitindo também três tentativas de suicídio durante o cárcere. Ela só foi libertada quando fingiu concordar com dois de seus algozes para trabalhar como infiltrada para o Centro de Informações do Exército. No depoimento dado após a sua libertação, Inês não relatou o coronel Paulo Malhães entre seus torturadores. Ele disse que nunca a viu na casa.
— Não vi a Inês na casa, ela não me conheceu. Agora, a Inês foi libertada sem o cara avaliar se ela estava realmente virada — criticou Malhães, que se recusou a dizer quem era o agente responsável por “virar” Inês.
Inês confirma o modus operandi detalhado por Malhães para quem se transformava RX. Ela relatou que foi obrigada a gravar um vídeo no dia 4 de agosto, no qual foi filmada contando dinheiro e lendo um contrato de trabalho com a repressão. “Neste contrato constava uma cláusula segundo a qual, se eu não cumprisse o combinado, minha irmã, Lúcia Etienne Romeu, seria presa, pois eu mesma, sua própria irmã a acusava de estar ligada a grupos subversivos”, relatou Inês. Libertada, doente, foi levada pela família a um hospital, onde sua prisão foi oficializada. Condenada à prisão perpétua, ficou presa até 1979, quando tornou público todo seu martírio. Ela recebeu o Prêmio Direitos Humanos de 2009, na categoria Direito à Memória e à Verdade.


Fonte: O Globo

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